sábado, 24 de novembro de 2018

A FUMAÇA DO CIGARRO - 2


        O pequeno relógio que lhe apertava o pulso o fez tirar os olhos do teto e olhar as horas. Já podia sentir o contato do mundo externo através de zoadas de motores e vozes penetrando de fora do quarto. Ainda tinha tempo. Voltou a mesma contemplação.
        Pensava em Marcos. Sua relutância em fazer parte desse misterioso e agradável mundo. Não tinha problema. A questão de como se encara determinadas coisas e os descobrimentos dos porquês de não aceitá-las, não leva ninguém a morte. No máximo se perde um pouco do ritmo de vida.Não fazer o que se quer pouco se tira a ideia do que se quer fazer. A ideia continua e a vida também, simples. Ele continuaria a esperar pela decisão do amigo. Não constitui mérito algum de ninguém forçar o outro a tomar decisões, muito menos de repudiá-las. O importante era o convencimento, a persuação, injetar-lhe animo, acompanhar, para que decidisse a deixar de lado as fraquezas humanas. O tempo mostraria a razão. A descoberta de cada face da vida, a profundeza das coisas e seus significados.
         Ele próprio tinha chegado ao final do que queria. O indivisivel. Apalpando com vigor o prazer de direcionar o seu ser mais escuro. Era só penetrar aquela fumaça, misturar-se com ela no ar e ver cada integrante de seu ser. Uma imensidão de mundos rotativos.
        Tornou a olhar para o relógio. Agora, para a porta. Marcos tinha que, pelo menos, lhe dar um retorno qualquer que fosse. Não cabia, porém, nenhuma ansiosidade.
         Os olhos deram um passeio lentamente pelo ambiente. Um arrepio percorreu o corpo No meio daqueles cartazes gigantes um retrato estava isolado por mero acaso num canto do quarto. Não tentou desviar a visão, mas encará-lo profundamente, e deixar-se perder nos labirintos que ele oferecia. A fumaça estava presente, densa, de chumbo, envolvente e hipnotica, como um raio a cortar laminas de água. O calafrio, os olhos estáticos, mas firmes e corajosos, procurando não fugir daquela figura. Já tinha vencido todos os estágios e estava ali, inteiro. Portanto, era capaz de vencer o último degrau. Assim teria seus discipulos, suas legiões, e poderia por em prática suas doutrinas, livremente, sem hipocrisias,  e sem bajulações pelas caricaturas humanas.
      

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