terça-feira, 25 de junho de 2019

A DOR PRETA DO CIÚME - Parte I


        Amava rubricar o livro de pontos todos os dias,rubrica perfeita, hora pontual, e nunca questionara o miserável salário. Ganhava pouco e descontava muito. Se não tinha expectativa nenhuma de melhorar de vida, muito menos pensava em bons vinhos na ceia de natal. Aviões, viagens, hotéis de luxo,  apenas sonhos e histórias da mulher, que falava pelos cotovelos.
     - Nossos vizinhos viajam muito, não vê?
      Não dizia absolutamente nada, e o silencio irritava cada vez  mais a esposa. Quando não apenas um sorriso amarelo, de dentes cariados, gestos de não agressividade, obediência em tudo!Quando olhado dentro dos olhos, vermelhidão nas bochechas.
       Passou a desconfiar cada vez mais das conversas da mulher. Quantas noites e dias para descobrir?
       Todos o tinham como um sujeitinho trouxa, apagado, sem expressão, de um passado nulo e um futuro sombrio. No entanto, nada disso um impedia de ser um macho. O instinto da virilidade grudado no íntimo das entranhas. Era essa a única certeza absoluta de sua vida sem nenhuma fantasia.
       Nunca esboçara qualquer insatisfação dentro do peito, nem qualquer repúdio pela tara do capitalismo selvagem, da desigualdade social e nem pela corrupção nas esferas do poder que a tudo engole.Tudo ficava trancado no peito, quando não se esvaiam pelos poros.  Nunca a vontade de mudar a mudar a malfadada trajetória de sua vida. , quebrar a barreira do silencio de seu cotidiano sem mistério ou encarar o futuro com uma visão ampla e otimista. Longe disso. Só o terrivel medo de perder a segurança  do ir e vir do trabalho.
       Agora a mulher com aquele perfume diferente todo dia, o penteado bem feito, as unhas pintadas e uma incrível alegria estampada no rosto, e naquele sorriso.  
      A descoberta veio exatamente com a alegria da mulher, aqueles olhos brilhantes, de total felicidade, e liberdade. 
      - Nosso amigo vizinho tem um carro tão lindo, almoça com a familia todo domingo em restaurante, e tomam banho no clube social. 
        Uma pontada dentro do cérebro toda vez que ouvia a mulher naquela lenga-lenga, sempre com um frio percorrendo a espinha, rasgando a carne como corte de um arame farpado, transformando sua apatia fisica e sua letargia mental. Fugir do fato não podia, era concreto. Uma mancha negra, cósmica, a lhe sugar com violência e a se alastrar diante de seu lascado existir. Não era como sua classe social, que parecia não ter direito a nenhum esperneio, agora se tratava apenas dele. Somente dele.
       As esquinas se tornaram figuras geométricas girando no espaço, e as ruas pareciam colmeias intermináveis de homens e mulheres, e todos os seres vivos, a jogar em sua cara o que acontecia em seu lar. Frenéticos seres de caras e bocas, coisa que nunca prestara atenção durante todo o percurso que trilhou anos a fio, quase uma vida, do trabalho para casa. Tinha acontecido com ele sim, não era um devaneio tolo. Ela estava maculando seu leito com o outro homem, seu vizinho, o dito, que podia usufruir das cosas boas da vida. Passou a agir de forma estranha. E os minutos de atraso no trabalho já eram motivos de comentários.    

segunda-feira, 3 de junho de 2019

SERÁ ISSO, JOSÉ? FINAL

.           Os copos foram cheios mais uma vez. O local ficava cada vez mais lotado e o odor de corpos aumentava. Risos e beijos, toques frenéticos. Um diretor de teatro, com as veias do pescoço exaltadas, protestava contra a justiça. Falava sobre o recente crime do carteiro e ator amador Elzano Sá, morto de forma cruel na noite de Teresina. Para ele, um crime encoberto pela ditadura militar. Seu protesto tinha o aval de vários artistas presentes.
              Os dois amigos continuavam.
            - Agora imagina querer enfrentar o sistema dessa forma, de apito no bico, cara!Só vai dar em porrada, muito chute e humilhação. Transaram tudo, menos o tempo. Cabelos grandes, brincos na orelha, piercing por todo lado, linguajar arrastado, caramba! O corpo numa boa e a cabeça parada em 68. Temos que nos recompor por inteiro. Essa de ir direto, peito aberto, é suicidio, meu irmão!  não adianta querer acusar ninguém de covarde, conformados, filhos-da-puta, não somos obrigados a nada. José. Ninguém esqueceu a condição ordinário de nosso Estado, de um povo subjugado por dezenas de anos de oligarquia politica e de latifúndios improdutivos. O que nós fizemos foi nos safar da morte. Como é? Navegar é preciso, morrer não é preciso. Uma demonstração de inteligencia nessa selva de violência. Agora eles querem continuar a luta aberta, sem diálogos, no tudo ou nada. O sistema mudou, bicho! Nós é que estamos atrasados. Você não acha, José?
              Alguém agora cantava de cima de uma mesa e pessoas batiam palmas. O Sacha's Bar vivia seus melhores momentos. Os dois amigos continuavam a secar copos.
             -Querem sempre empurrar a gente pra dentro do caldeirão, bicho! Não vamos mais cair nessa, cara. Vamos mudar de tática, vamos nos junta ao povo faminto, escutar, aprender. A massa, cara! Essa que não está nem aí e foge dos meninos de cabelos pintados. Por que a massa, meu amigo, tem outro tipo de fome, fome de viver! Talvez ela já esteja cansada de segurar o pau de uma bandeira. A massa implora, bicho, vai lá,  protesta e grita por outras coisas, e não está nem aí para a ditadura. Quando quer pede de joelhos, por que quer viver, cara.
            Muitas pessoas passaram a olhar com maior atenção para a conversa dos dois amigos. Impacientes, alguns já queriam invadir aquela intimidade. O tempo urgia e pedia a participação deles na balbúrdia daquela alegria. Mas os dois continuavam.
          -Onde nós estamos, José? Em que cu nós nos metemos, cara? Essa tática de roer o sistema pelas beiradas, será que vale a pena? Ruir a base, cara! Ir nos miolos, chupá-los e depois cuspir. Não vamos mais ficar nessa de esculhambar por ,esculhambar, não dar bicho! Vamos deixar de porra-louquice, assentar a cabeça, não vamos sair por aí matando  de infarto, cara.
             O amigo de branco parecia continuar alheio ao movimento do bar. Mas agora com um ar maroto e um leve sorrido nos labios. O outro agora estava de pé, com o copo empunho.
           - Porra, José, será isso, cara?
             O velho boteco Sacha's Bar era só alegria!