segunda-feira, 3 de junho de 2019

SERÁ ISSO, JOSÉ? FINAL

.           Os copos foram cheios mais uma vez. O local ficava cada vez mais lotado e o odor de corpos aumentava. Risos e beijos, toques frenéticos. Um diretor de teatro, com as veias do pescoço exaltadas, protestava contra a justiça. Falava sobre o recente crime do carteiro e ator amador Elzano Sá, morto de forma cruel na noite de Teresina. Para ele, um crime encoberto pela ditadura militar. Seu protesto tinha o aval de vários artistas presentes.
              Os dois amigos continuavam.
            - Agora imagina querer enfrentar o sistema dessa forma, de apito no bico, cara!Só vai dar em porrada, muito chute e humilhação. Transaram tudo, menos o tempo. Cabelos grandes, brincos na orelha, piercing por todo lado, linguajar arrastado, caramba! O corpo numa boa e a cabeça parada em 68. Temos que nos recompor por inteiro. Essa de ir direto, peito aberto, é suicidio, meu irmão!  não adianta querer acusar ninguém de covarde, conformados, filhos-da-puta, não somos obrigados a nada. José. Ninguém esqueceu a condição ordinário de nosso Estado, de um povo subjugado por dezenas de anos de oligarquia politica e de latifúndios improdutivos. O que nós fizemos foi nos safar da morte. Como é? Navegar é preciso, morrer não é preciso. Uma demonstração de inteligencia nessa selva de violência. Agora eles querem continuar a luta aberta, sem diálogos, no tudo ou nada. O sistema mudou, bicho! Nós é que estamos atrasados. Você não acha, José?
              Alguém agora cantava de cima de uma mesa e pessoas batiam palmas. O Sacha's Bar vivia seus melhores momentos. Os dois amigos continuavam a secar copos.
             -Querem sempre empurrar a gente pra dentro do caldeirão, bicho! Não vamos mais cair nessa, cara. Vamos mudar de tática, vamos nos junta ao povo faminto, escutar, aprender. A massa, cara! Essa que não está nem aí e foge dos meninos de cabelos pintados. Por que a massa, meu amigo, tem outro tipo de fome, fome de viver! Talvez ela já esteja cansada de segurar o pau de uma bandeira. A massa implora, bicho, vai lá,  protesta e grita por outras coisas, e não está nem aí para a ditadura. Quando quer pede de joelhos, por que quer viver, cara.
            Muitas pessoas passaram a olhar com maior atenção para a conversa dos dois amigos. Impacientes, alguns já queriam invadir aquela intimidade. O tempo urgia e pedia a participação deles na balbúrdia daquela alegria. Mas os dois continuavam.
          -Onde nós estamos, José? Em que cu nós nos metemos, cara? Essa tática de roer o sistema pelas beiradas, será que vale a pena? Ruir a base, cara! Ir nos miolos, chupá-los e depois cuspir. Não vamos mais ficar nessa de esculhambar por ,esculhambar, não dar bicho! Vamos deixar de porra-louquice, assentar a cabeça, não vamos sair por aí matando  de infarto, cara.
             O amigo de branco parecia continuar alheio ao movimento do bar. Mas agora com um ar maroto e um leve sorrido nos labios. O outro agora estava de pé, com o copo empunho.
           - Porra, José, será isso, cara?
             O velho boteco Sacha's Bar era só alegria!
              

3 comentários:

André Araújo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
André Araújo disse...

Outro dia eu estava lendo sobre os crimes sem "donos em Teresina-PI", e as histórias de Elzano e da doméstica Maria das Mercês, ambos assassinados na nossa capital no primeiro semestre de 1977 me causaram impacto mais uma vez. Essas duas tramas dariam filmes e tanto. Mas quem os matou?... Por quê?
Eu tinha seis anos na época nem morava aqui, mas aos 11, em 1982, no dia de finados, vi na tv depoimentos de pessoas, nos cemitérios, e uma diante do túmulo da doméstica falando que havia alcançado graças... Achei curioso e resolvi perguntar para adultos da época sobre o assunto. As respostas foram muitas... e os assassinos ainda devem estar por aí, rindo da sociedade, igual o mesmo que acabou com a vida da estudante de Direito Fernanda Lages, morta em 25 agosto 2011.
Acho que vou eu mesmo escrever um livro inspirados nessas histórias. São muitas as perguntas... Zero respostas. Parece que as vítimas, caladas para sempre, levaram esse segredo para seus túmulos.

Alexia disse...

Minha mãe tinha 15 anos quando a doméstica e o carteiro foram assassinados, e ela comentou que o assunto na época parecia coisa de novela. Todo mundo só falava nisso, mas não deu em nada. Bem parecido com esse assassinato da estudante de Direito.