quarta-feira, 10 de julho de 2013

    
                                                                   HOMICÍDIO.

              Um assalariado, desses que amam rubricar o livro de pontos todos os dias. Ganhava pouco e descontava muito, sonhando com mesa farta e bom vinhos na ceia de natal. O sorriso amarelo, de dentes cariados, e gestos de não agressividade: vermelhidão nas faces quando olhado dentro dos olhos.
             Quantas noites, e dias, e meses e anos para descobrir?
              Era mesmo um sujeitinho trouxa, apagado, sem expressão, de um passado nulo e um futuro sombrio. No entanto, era um homem. O que ser mais do que isso? O extinto de superioridade grudado no íntimo das entranhas. Não, aquela desconfiança, não era nenhuma de suas fantasias costumeiras.
             Antes de descobrir tudo trazia no peito uma certa insatisfação, chegando a esboçar um repúdio pela tara do capitalismo selvagem, a violência e a injustiça social, só que sua revolta morria pelos poros. Nunca a vontade de mudar a malfadada trajetória de vida, ultrapassar a barreira do silencio de seu cotidiano sem mistério, encarar o futuro com uma visão ampla e otimista.
             Agora a pontada dentro do coração, corrompendo suas carnes, querendo acabar com a letargia física e a apatia mental. Fugir não podia. O fato era concreto, sem argumentação. Era como uma mancha negra a escurecer seu lascado existir.
             As esquinas se tornaram figuras geométricas no espaço e as ruas pareciam colmeias intermináveis. Nunca prestara atenção no percurso que trilhara quase uma vida do trabalho para casa. Não adiantaria treinar mudanças bruscas, impostação de voz, estufar o peito e se imaginar um super-ser, como sempre fazia trancado diante do espelho sujo do banheiro, seu único passatempo favorito. Agora era de verdade, tinha acontecido, não era devaneio.
           Procurava a culpa e só encontrava correção e firmeza no seu linear caráter de homem. Não existia o por que do fato. Era o que fazia introverter-se cada vez mais, retesando os nervos, sufocando as lágrimas, o pensamento no terror do clichê estampado na testa. Não era mais possível continuar com a mesma lentidão rumo ao fim.
          Lembrou-se de fitar as pessoas nos olhos, levantar a cabeça a um cumprimento, rabiscar nos papéis coisas pornográficas e fugir da repartição antes do fim do expediente.
          Foi um dia diferente na sua vida. Em que ele precisou fitar alguém friamente, tomar uma decisão sem tremer, sem suar frio, sem suar quente, o diabo! Um dia em que não engoliria mentiras, nem acreditaria no que não fosse a pura verdade, nem perdoaria ninguém só por perdoar. Um dia em que não haveria sorriso amarelo nem nó na língua.
         Não precisaria pensar nos filhos que ficariam órfãos maternos, pobres heranças.
         Silencioso como sempre ouviu tudo calado, depois apontou o taurus para a cabeça da esposa. Ela não fizera questão de jogar na sua cara que há muito tempo existia outro em sua cama. Descarregou a arma.
        Triste dia de vingança, morte e solidão.
 
                                                               (Publicado no jornal  O Estado, dia 31.05.1981)       

Um comentário:

Marcia Zanelatto disse...

Caro, sou dramaturga, professora e coordenadora do Programa SBAT de Dramaturgia, no Rio de Janeiro. Preciso muito conversar com você. Poderia me mandar seu email? O meu é zanelatto.marcia@gmail.com
Te aguardo,
Marcia Zanelatto